O APRENDIZ DE BRUXO (continuação)
e a barata que
insiste em mover o grão que transformará o mundo
que extirpará o
mal
que eliminará o
pecado
mais ao sul da cidade um poeta semeia sua própria paisagem com
champagne & vertigens
mais ao norte os
operários sangram sobre as máquinas
e os soldados se
matam numa batalha sem nexo
recordo minha
primeira Olivetti
e todos os
sonhos que datilografei um dia
recordo as feras
que passeavam por minha primeira escola
nossas ingênuas
sessões de espiritismo
a ignorância das
freiras perseguindo o delírio das fadas e das onças ressuscitadas
mergulhado no
grande armazém de secos & molhados da memória
revivo o êxtase
daquele aprendiz de bruxo
que segue
resistindo ao fardo da insana maquinaria
quem rascunha
nossas almas?
quem restituirá
ao corpo sua medida exata?
onde dormirá o
corvo azul da liberdade?
o jovem de
óculos grita novamente
sou negro sou livre sou lindo
um índio esmola
na esquina
girando a
manivela do realejo
girando o cosmos
e o útero apodrecido da cidade
girando a
esquisita imaginação dos turistas
fisgando minhas
vísceras imersas no álcool dessas ruas infestadas de policias
de
militares sem abrigo
de ossos sem amor
o fotógrafo
ensaia um click o palhaço ensaia um número o poeta ensaia um transe
os cavaleiros de
Oxossi celebram com os sobreviventes do vodu
empresas
petrolíferas seguem destruindo a terra
em algum lugar
dessa muralha
o aprendiz de
bruxo ainda luta contra as forças demoníacas
a cidadela está
sitiada os anjos entoam novos salmos os poetas mergulham na fumaça
o mistério permanece o mesmo o verso permanece incansável a noite
permanece sagrada
meu coração de náufrago segue seu próprio aprendizado
experimentando todos os utensílios disponíveis na nave
como aquele velho almirante louco que desgraçadamente abandonou a
profissão do mar
como aquele maníaco pirotécnico que por acaso aprendeu javanês
como aquele insensato samurai neo-pitagórico suicidado na solidão do
álcool
como aquele dragão erótico e furioso das ribeiras premonitórias do
ceará
como meu avô afundando no sono eterno dos que habitam a região dos
mortos
ouço vozes sou assaltado por perfumes entrego-me às alucinações
com minhas mandrágoras e caleidoscópios, com minhas clepsidras de
vidro
com meus escapulários heréticos, sigo minha irreverente travessia:
a jornada de um órfão enfeitiçado em seu tortuoso aprendizado de
bruxaria...
nuno g.
quarta-feira, 20 de abril de 2011 – 15:15.