cartaz Festival Cidadão Fechou
pro Rock. 1998



Aqui Jaz um Cidadão
ou Ode ä Instigação na Cidade da Luz

André Alcman 




“Abram as portas das suas casas
Deixem os ladrões entrarem
Eles vão tentar levar tudo que puderem”

(Trecho de “O Nada” da banda Cidadão Instigado)


Quando meu grande amigo André Dias me convidou para escrever estas páginas, coincidiu com minha iniciativa de findar meu antigo empreendimento, o Espaço Cultural Cidadão do Mundo, vulgo “Cidadão”, que tanto marcou o bairro do Benfica e a cena alternativa da música de Fortaleza nos tumultuados anos 90. “Que irônica sincronicidade junguiana!”, pensei comigo mesmo antes de aceitar o convite. Afinal, encerrar o Cidadão seria acertar contas com uma etapa de minha vida que eu inconscientemente parecia não querer superar e o convite se apresentava como uma bem-vinda trama cósmica para a realização de tal demanda. Assim, eu deixaria de agir como um ex-padre que não se esquece de sua antiga paróquia.

Tudo se desenrolava para que eu escrevesse um necrológio. Entretanto, um dos criadores desta revista me pediu mais: “André, fala também da cena musical de Fortaleza, do Cidadão Instigado etc.”. Sendo assim, não é apenas sobre o finado espaço cultural que preencherei estas linhas, mas sobre a própria cena musical da capital vivida na época do Cidadão, das infindadas querelas em torno do vazio cultural da cidade, e do desde então maior expoente da música cearense: a banda Cidadão Instigado.

ESPAÇO CULTURAL A & A LTDA ME. Esta é a razão social do empreendimento, que neste momento deixa de existir de direito, já que de fato ele não existe desde novembro de 1999. Depois de dois anos de funcionamento (pois sua inauguração ocorreu em outubro de 1997) só agora, após treze anos de seu fechamento, é que a empresa é finalizada. Isto é, por mais de uma década o fantasma do Cidadão do Mundo vem me assombrando.

Sem dúvida, a minha experiência à frente do Espaço Cultural Cidadão do Mundo trouxe-me alguma bagagem para falar da cena musical cearense. Localizado na Avenida da Universidade, 2322, no Benfica, durante os dois anos de seu fun- cionamento, por lá passou uma média de duas atrações
por semana. Vários estilos fizeram som no Cidadão: Heavy, Punk, Blues, MPB, Techno, tutti frutti quanti. Realmente, a diversidade de atrações foi a tônica das noites no Cidadão. Variedade não apenas em termos musicais. Foram apresentadas peças de teatro, curtas metragens, jogamos capoeira, etc. Todavia, infelizmente, todo o material (pôsteres, fol- ders, releases, etc.) foi devorado pelas traças do meu antigo apartamento. Relíquia que não existe mais, persistindo, apenas, alguns papéis que me renderam, desta última vez que os acessei para escrever este texto, uma virose devido à alta concentração de ácaro. Só me restam a memória e estes poucos papéis mofados, onde ainda encontramos o nosso cardápio. Acreditem, enfim... De todo modo, vivenciando in loucos toda esta diversidade, pude refletir sobre a cena musical de Fortaleza e sobre a própria produção cultural da capital do nosso estado.

É inegável que nas conversas de bar - inclusive no nosso - e fora deles, o assunto do vazio cultural de Fortaleza vinha à tona. Principalmente, quando se encontram literatos, músicos etc., os chamados “homens de cultura”. O embaraço nunca é disfarçado quando nos comparávamos a outras capitais do Nordeste, especialmente a Recife. É dito que nós não temos uma retaguarda folclórica, po- pular, intelectual, artística... Quando ocorre a comparação com a região do Cariri, especialmente Crato e Juazeiro, Fortaleza também fica em desvantagem. Isto traz desconforto, sem dúvida. Já ouvia muitas lamentações e nos anos 90 a tônica era essa - inclusive, entre a moçada, por causa do Manguebeat. Dizia-se na época: “puxa Fortaleza não tem movimento, não tem nada”. “Aqui é uma pasmaceira, só tem forró!” - hoje atualizado como forró eletrônico. Era verdade? É verdade? O que valia para aquela época, ainda vale para hoje? Sim vale. Se a verdade é uma crença, eis os crentes da angústia. Em outras palavras, em Fortaleza nos sentimos meio que suspensos
no ar, especialmente, hoje com o fetiche oficial do turismo em tempos de mega aquário. Será que nossa capital já virou uma caótica Miami dos trópicos?! Principalmente hoje, por vivenciarmos o oba oba turístico junto a um caos citadino visto em indicadores que apontam um inchaço urbano com seus quase dois milhões e meio de habitantes, com a maior densidade demográfica do país e o 19° IDH entre as capitais brasileiras.

Mas o que faz Fortaleza assim diferente daquilo que os produtores culturais pensam a respeito de como ela deveria ser? Vamos lá: quais as motivações históricas e quiçá sociológicas para a “pasmaceira cultural” da capital do Siará Grande? Alguns diriam, partindo de uma análise da infra-estrutura econômica, que um forte motivador seria o desenvolvimento tardio da capital do estado, impulsionado pelo surto do algodão no contexto da Guerra de Secessão nos outrora Estados Desunidos do Norte. Outros ponderariam que pela capital passaram e/ou atuaram movimentos literários, populares e folclóricos, vistos na Padaria Espiritual, no Pessoal do Ceará, na Massafeira, no Maracatu e etc. Não sei. Só sei que aqui só posso falar a partir da minha bendita vida finita, em parte vivida, lá no Cidadão. Deixem os “homens de cultura” falar, ou melhor, aqui permitam a um ex-dono de bar - que também não deixa de ser um dos “home da cultura” - se expressar através de suas impressões sobre a famigerada cena musical de Fortaleza e de outras bilongas mais abrangentes.

Em seu tempo, o Cidadão do Mundo foi um microcosmo de todas estas angústias. Mas quando abrimos o estabelecimento, eu não pensava nestas questões. Apenas queria sair de um trabalho enfadonho. Depois de morar dois anos em São Luis e passar um ano no Ceará, não aguentava mais o que fazia. Dane-se a promoção de vendas e o comércio! Como uma catarse, arrisquei tudo e apliquei toda minha rescisão no empreendimento. Chamei meu irmão, Alexandre (o conhecido Vespa), para sócio e mandamos ver. Na noite da inauguração, com um Show antológico da Banda Matutaia (na sua fase Rhythm and Blues, anos luz antes do Sonolento-Pop-Mucuripe-Club), todo nosso capital de giro estava gelando no freezer. Durante seis meses achávamos que estávamos tendo lucro, na verdade estávamos pagando as contas em dia. Depois deste período de “fartura”, sabiamente meu irmão saiu do negócio, veio um ano de endividamento intensivo e, nos últimos seis meses, só não queria mais dever a ninguém. Resultado da má-administração: voltei para casa de meus pais com um sorriso amarelo, alguns CDs (já que vendi tudo por lá, aparelhagem de som, vinis...) e algumas roupas às costas (na sua maioria cuecas desbotadas).

Mas não me lastimo. O convívio com a ga- lera foi massa. Muita gente morou no Cidadão ou pelo menos dormiu por lá uma noite. Éramos bipolares, conforme a sugestão química. Um amigo meu chegou a dizer que nunca vira em um bar um desconhecido bêbado receber almofadas para dormir. Aconteceu, mas também ocorreu de tirarmos, no braço, a galera que aprontava. Muita gente legal morou por lá, como o André Dias e uma rapaziada que eu por aí vejo ou nunca mais vi: Chico da Gaita, Allyson da Parafernália, André agora dos piercings, Saca contrabaixista, Kátia Arruda do teatro, Seu Freitas (nosso antivigia), o Dante (o cara zen do som e de outras produções) e tantos outros que pernoitaram. Também não poderia esquecer-me da galera do front do bar: da Cinara, do Pinguim, do Over Pointing, da Ana e do nosso filho Roan, além dos inúmeros garçons e seguranças de que não lembro mais dos nomes.


banda Matutaia

Não, não éramos uma família. Longe disso. Se fôssemos seria impossível morarmos juntos. Éramos apenas amigos e amigas que dormiam e sonhávamos juntos (não necessariamente nesta ordem). Às vezes nos curtíamos, outras vezes nos odiávamos, em meio a altas taxas de glicose, aos intermináveis nevoeiros e à maldita brilhantina. Isto foi o Cidadão nas internas para além das divisas mal-administradas. Em termos pessoais, passei da idade cabalística dos 27 anos na “boa”, cheguei ao palácio de meus excessos e lá os deixei. Depois acabei atravessando de pés descalços, à la Paul McCartney circa Abbey Road, para o outro lado da Avenida da Universidade...

Voltando às angústias. A intenção do bar era reunir o maior número de estilos musicais que estivessem fora do mainstream da música cearense. Diariamente, tínhamos um cardápio musical de acordo com estilos distintos. Tinha o dia da MPB, do Rock e derivados, do Reggae, do Jazz, da música eletrônica, e por aí vai. O que observávamos: o cara que ia num dia não vinha no outro e ainda tirava um sarro com o gênero do outro dia. A vivência era tribal. Tornamo-nos um ponto de encontro de tribos que se reuniam naquele dia, mas que não criavam uma identificação com o lugar. Em outras palavras, nós éramos o não-lugar da cena musical. Um lugar quase fantasmagórico... Quem nos salvava
em termos de assiduidade era um pequeno público mais ou menos cativo. O “pessoal do Benfica”, em especial a galera do grupo político Contracorrente, e outros frequentadores: André Vasconcelos, Augusto, Felipe Franklin (então esbelto), “o guru” Emiliano, os vários Paulinhos, Tyrone, Chicão, Kennedy, Dídimo, Salvador, Wellington das pe- daleiras, os Robertos, os Júniors, Gerardo, o Oscar e sua inseparável flauta, Nuno, Uirá, os Cláudios, Carlos Jorge, Manoel Carlos e tantos outros Carlos (incluindo o emílio), Mário Brother, Erivanzinho, o indesejável Curu, Ricardo Doido (agora tranquilo), o outro Kennedy que, infelizmente, já partiu... Não poderia me esquecer das “meninas do Benfica” que às vezes nos faziam companhia até de manhã - Juliana Carvalho, Klycia, Jô, Isamira, as Socorros, Meiry, as agora recifenses Claudinha e Bel, Virgínia, Fran, Celina, Cassiana, as Kátias e tantas outras, do pessoal dos cursos de humanidades da UFC, da UECE, da Escola Técnica (Saulo, Reginaldo, Felipe Sampaio e Sérgio) e na “velha guarda” do bairro (Kassundé, Índio, Vladísia, Henrique da rádio etc.). E tantos outros que de tanto querer lembrar acabo esquecendo, naqueles tempos irreais, em plena ressaca real, durante a transição para o reinado de F(T)HC II.

Sem exageros, éramos de vez em quando até marginalizados. Já ouvi muita gente, quando íamos distribuir folders dos eventos, nas mesas de bar de Fortaleza, dizer: “você vai para aquele lugar de ***!” e completavam “é muito melhor o Domínio Público”. Naquela época, eu me sentia irmanado apenas a um lugar: o Peixe Frito do Gato, do Kasane e do Marcelo. Éramos como mônadas autônomas frente aos demais lugares da noite fortalezense. Neste tempo, uma “associação da burocracia messiânica do rock nativo” deu as caras, realizando altas magias negras para nos azarar. Na verdade, o bruxo era apenas o seu eterno-honorário-presidente, um tal de “amaldiçoado”.

Fortaleza tinha esta sina. Eu me lembro de poucos lugares interessantes nos anos dos 1980, tipo os Duques e Barões. Depois do Cidadão e do Peixe Frito não, a cena melhorou muito. Já perambulei
em vários lugares, nos anos dos 2000, que ti- nham propostas interessantes, como, por exemplo, o Teatro da Boca Rica (onde vi os melhores shows do Cidadão Instigado) e mais recentemente, O Agulha, de outro André super-gente-fina, além das inusitadas festas organizadas cidade adentro, como as da descolada Thaís & Companhia na Praça dos Leões. E agora muito recentemente o Espaço Casa.

O Cidadão era lugar pequeno, não cabiam mais de trezentas pessoas, com seus 12 metros de frente e 20 de fundo. Tinha uma exuberante árvore, com uma cabeleira rasta – hoje inexistente, devido ao cruel pragmatismo petista (atuais locatários) - que eu dizia, com uma descarada licença poética, que era centenária. As pessoas acreditavam. Tínhamos um palco pequeno com duas sinucas ao lado (alugadas por outro lendário frequentador da casa, El diablo Eufrásio e seu sócio Solano). Depois implodimos tal área e fizemos um palco de aproximadamente um metro e meio. O palco foi reinaugurado com um show de uns posers-covers que homenagearam o Led Zeppelin.

Era fácil tocar no Cidadão do Mundo. Era só levar uma fita cassete (que nunca ouvíamos) e um release que folheávamos rapidamente. Pagava-se o custo do evento com a bilheteria e ficávamos com uma pequena porcentagem desta. Noutros casos pagávamos o cachê dos músicos. Sem dúvida, era uma operação de risco, que em muitos momentos tivemos que arcar. Como numa sacanagem histórica de um sujeito que tem nome do elemento mínimo da chuva acrescido ao nome de nossa capital. No dia do show, notei que ele daria outro, de graça, num destes espaços culturais de banco. Não preciso nem dizer o fiasco que foi... Só não tocou lá no Cidadão do Mundo quem não quis e umas poucas telhas marombados de camisas baby look, que eu não sabia de onde eram (na ocasião tripliquei o valor dos custos para desmotivá-los a tocar, o que realmente ocorreu).

A polícia sempre nos visitava naqueles bons tempos que antecederam aos milicianos oficiais dos deixe-de-ronda. Pensei até em fazer umas parcerias com as associações de policiais devido à constante assiduidade. Tínhamos que ser criativos para não importunar a clientela com as revistas que poderiam trazer problemas a todos. Era comum algum policial, seja militar ou civil, perguntar: “o estabelecimento tem alguma coisa a ver com a Universidade?” “Sim, temos parcerias”. Eu respondia, sem especificar de qual tipo, desnecessária, já que nunca me perguntaram de qual espécie seria tal parceria. A maior parte das visitas policiais era por causa do volume do som. Em especial, dois vizinhos se incomodavam com o volume sonoro: um maranhense aposentado e o síndico do prédio de trás. Eles tinham razão, por isso eu fazia de tudo para que a música ao vivo não passasse da meia-noite, tal qual o limite da Cinderela. Fomos importunados pela polícia inúmeras vezes, mas uma marcou. Houve uma apresentação, na mesma noite, de três bandas de Black Metal. Infelizmente não tenho mais registro das mesmas. O hilário é que neste dia, fomos visitados pelas polícias militar e civil pelo menos cinco vezes. Como bons cristãos que eram, os policiais se assustavam com a música e a performance das bandas e partiam em retirada depois de avistarem aquele cenário infernal.

No Cidadão, observei algo sobre a cena musical cearense, independente de estilo: a grande maioria das bandas eram caricaturas de exemplares pernambucanos, sudestinos, grugeanos, etc. A carcaça noise dos pobres! Vampiro brasileiro! (era inevitável a cuspida no chão). Mas nos divertíamos, afinal, algumas covers pareciam playback. Vivíamos a ressaca de ilustres defuntos. Kurt Cobain morrera em 1994, Renato Russo havia morrido em outubro de 1996 e Chico Science em fevereiro de 1997. Estas personalidades eram onipresentes no Cidadão. Não conto os inúmeros tributos realizados para estes ícones. De vez enquanto, rolava um retrô para o Raul Seixas, que tinha morrido em 1989 (como os da Banda Salt, que inclusive foi motivo de uma frenética cena de bang bang fora do bar) ou outros mais raros como o que rolou para The Doors (a banda eu não lembro). A partir daí pude sentir a decadência do rock, afinal, quando se homenageia tanto os ídolos do passado, mesmo os mais recentes, é porque o presente deixou de nos merecer ou vice-versa. Tão sumário assim?!

Por outro lado, tivemos momentos realmente memoráveis e outros nem tanto. Vamos lá, sem dividirmos o joio do trigo: Babi Fonteles, Gigi Castro, Ana Célia, Uttama, Bob, Tribe of Lion, Mofo (primeiro banda do batera Felipe Maia, atual Scandurra, memorável amigo das conversas sonoras da casa), Biduin, Gang da Cidade, Renegados (dos imortais irmãos do Rock and Roll, Ricardo e Marcelo), Kasane & Subblues, Kizumba, Fatal 7, os eventos do movimento anarcopunk (com a presença de bandas como Ruptura, do Pastel e do João Paulo), Alma Blues (outra banda do “ex-mofados” Felipe Maia e do Jorge Mocegão) dos Fabulosos Mave- ricks (dos citados mofados e liderado pelo Coçador del Chaco, Jabá, que nos rendeu, noutro momento, um antológico “brancão”) Veia Cava (dos grandes Animal e Alex e do ilustríssimo Giri), Dagored (do guitarrista-papo-tranquilo Robério e com o Tony Opus nas baquetas), Cobaia (na fase tímida de Jo- nathan), as meninas do Dress, Zôia (dos endiabrados Roqueney e Erasmo), Mr. Spaceman (do guitarrista Régis Damasceno) e Harry (projeto do quase lenda do tecnopop brasileiro, Hassen). Nas festas de Reggae e de Rap, respectivamente, daquela galera da rádio e da moçada do Cultura de Rua. Nas Raves organizadas pelo DJ Fil, onde a DJ Priscila e o Dustan Gallas fizeram altos sons. Nos loucos eventos multimídia da galera da Parafernália (Ayla Andrade, Mardônio França et al) e no lançamento do cordel “Homem Caranguejo”, de José Erivan em homenagem ao Chico Science, com exposição de fotos do Ulisses. Também se destacaram as apresentações teatrais organizadas por Kátia Arruda: da Companhia Mais Caras, dos estudantes do Teatro Universitário, do teatro de bonecos de Jonhy Sandro e das meninas da antiga Escola Técnica (dirigidas pelo Paulo Ess e cujas meninas Juliana e Marisol deixaram a ala masculina dos freqüentadores e nativos do bar a babar). E não podemos nos esquecer dos números circenses com o Galdêncio, nas mostras de vídeo organizadas pela galera da Casa Amarela (André Dias, Ricardo Juliani e o Telmo Carvalho), da capoeira ministrada pelo Querido e pelo João Batista, nas inúmeras oficinas e sei lá o quanto mais.... Foi mal quem ficou de fora, aqui está o que me lembro e o que está arquivado precariamente.


Entretanto, o Cidadão Instigado se diferenciou. Na primeira vez que Os Instigados tocaram no Cidadão a diferença já parecia na passagem de som. O guitarra-voz Fernando Catatau, com aquele seu timbre de voz inconfundível, chegou para mim com a sua sinceridade ímpar: “André, não me leve a mal, mas com o som de teu bar não dá”. Tivemos que alugar um som só para o show dos caras. Fiquei possesso, mas o admirei, especimente pela qualidade do show. Nunca nas passa-gens de som vi alguém com o ouvido tão apurado, enchendo o saco dos demais membros da banda. Ah sim, o som do nosso Cidadão era uma merda mesmo e o show dos caras foi memorável, ajudado pelas caixas de som da dupla brasa-mora Erasmo e Roqueney. A casa lotou que ficou neguinho com o pescoço doído devido ao efeito cuco na portinha de entrada do bar.

Os shows da Banda são um caso à parte. Muita gente se surpreende com a intensidade e, às vezes, com a angústia de parte do som dos caras. Quando Catatau fecha os olhos e os abre meio que endiabrado, profundos como os de um Antônio Conselheiro, acompanhado por seus gritos expectorantes, sai de perto... Já vi muita gente assustada. Dos shows que rolaram no Cidadão, lembro-me com carinho de um com o DJ Dolores. Todavia, a rapeise alternativa de Fortaleza preferiu uma daquelas festas no future da praia do Futuro com som mecânico. Resultado, mais um prejuízo que, desta vez, foi amenizado pela presteza de Catatau. Jamais esquecerei...

Sem dúvida, o Cidadão Instigado sempre brincou com esta história de influência e de identidade – longe evidentemente das frescuras teóricas acadêmicas. De maneira involuntária, através da própria música, porque na maioria das vezes Fernando Catatau ficava um pouco alterado com comparações ou rotulações (hoje, na maturidade, ele apenas sorri). Era comum na época, em virtude da ressaca da morte do Chico Science, comparar o som dos Instigados ao da banda de Recife. Na verdade, era uma comparação forçada e simplista que partia do fato que a banda de Fortaleza usava a zabumba (tocada pelo DJ Fil), assim como faziam os homens-caranguejos. Entretanto, o maracatu que os Instigados bebiam era diferente do pernambucano (seja o rural ou o urbano). Catatau e sua turma mergulharam no maracatu fortalezense mesmo - com aquela marcação bem mais sincopada e lenta - como outros antes fizeram, a exemplo de Ednardo (entretanto, tal refe- rência “regio nalista”, nos dois últimos álbuns, quase não se percebe). Outra comparação, menos comum, mas costumeira entre os músicos, era da maneira de tocar do Fernando, dita como próxima da do guitarrista Carlos Santana. Certa vez, antes de um dos shows da banda lá no Cidadão, o jornalista Henrique Nunes perguntou-me sobre as influências dos Instigados. Falei no embalo dos pernambucanos dos Sciences e do mexicano Santana.



cartaz anunciando show com a banda O MOFO. 1997


Catatau, com razão, não gostou e me disse: “não tem nada a ver cara, somos experimentais!”. “Que presunção!”. Pensei comigo mesmo, afinal ser experimental é uma postura estética e não a caracte- rização de um tipo de música. Experimental frente a que gêneros (s) musical (is), cara pálida? Entretanto, vendo tudo retrospectivamente, devo dizer que Catatau estava certo. O som dos Instigados é sim experimental, não no sentido “cabeção sem coração”, mas sim de sempre procurar por algo novo dentro do formato canção, que se tornou imperativo dentro da música brasileira desde a Tropicália. Afinal, o próprio compositor hoje já baixou a bola com esta estória de experimentação quando diz que seu som deriva do simples fato dele ser um típico roqueiro cearense, do final dos anos 70 e dos anos 80, que ao mesmo tempo em que ouvia um monte de rock, não dispensava as festinhas com os forrós e as músicas lentas (puxa, também sou deste tempo estranho...). Por tudo isso, ao ouvirmos sua música, é notório o caminhão de referências que vão se misturando ou sendo esquecidas ao longo de sua trajetória, que vem sendo desenhada desde um EP nos anos 90, passando pelo Ciclo da Decadência (2002), pelo Cidadão Instigado e o Método Túfo de Experiências (2005) e o derradeiro UHUUU! (2009). Quais referências: maracatu cearense, Santana, Hermeto Pascoal, Tom Zé, Odair José, King Crimson (especialmente nos riffs e nos climas esquizóides), Hendrix, Miles, Sérgio Ricardo, Floyd e UHUUU-escambau! Sem dúvida ouvimos outras referências. Digo referências porque acredito que Catatau e Companhia não teriam problema algum em parafrasear Villa-Lobos quando este era comparado a Debussy ou a Stravinsky: “toda vez que sinto a influência de alguém me sacudo todo e pulo fora”. O que ouvimos na música do Cidadão Instigado é uma verdadeira desleitura das influências tal qual Harold Bloom viu na poesia de um, por exemplo, Shakespeare em relação a Marlowe. Nesta perspectiva, a angústia da influência se personaliza em um estilo próprio, através da desconstrução das mais variadas referências.


A bagagem dos músicos também ajuda na hibridização das referências e na personalização da proposta musical da Banda. É quase impossível imaginarmos a guitarra de Catatau, nos Instigados, sem segurança das notas do baixo de Rian Batista. Outro que se destaca na história do Cidadão Instigado é Dustan Gallas, o senhor das sutilezas timbrísticas, sim senhor! Este trans-instrumentista tocava caixa e prato na Banda e agora está no teclado - lembro a primeira vez que o vi tocar, foi guitarra e acompanhando um violinista de jazz norte-americano que agora esqueci o nome. Régis Damasceno também é figura das antas, tocando os Beatles da vida e outras coisitas anglo-americanas mais contemporâneas - o cara foi sócio-fundador do Velouria, ícone da cena alternativa de Fortaleza. Damasceno tem um dos fraseados de guitarra mais discretos que já ouvi, perfeito junto à explosão de Catatau. O baterista Clayton Martin preenche em termos rítmicos a sonoridade da Banda como um Keith Moon, aumentando, sem dúvida nenhuma, a intensidade da banda. O outro cara, Kalil Alaia, faz muito bem os efeitos inusitados.

Outro fator que trouxe outras referências fora a transcendência-imanente-territorial-de-todo-cearense-nômade. Visto na morada da rapaziada, em São Paulo, desde o começo deste século (na verdade, o compositor de “O Tempo” já perambulava desde o começo dos anos noventa na antiga capital da capitania de São Vicente). No acompanhamento de Catatau frente às figuras como Otto, Vanessa da Matta, dentre outros, além da produção de Arnaldo Antunes e a que agora ele vem processando com o eterno Mutante Arnaldo Batista. A projeção nacional também fora ressaltada pela melhor apresentação dentre as Bandas que participaram de um programa global em homenagem ao Nelson Mota - muita gente pode ter estranhado, mas vi o primeiro show do Catatau numa banda que tocava Lulu Santos e outros oitentistas, no Ginásio do Colégio Nossa Senhora das Graças, acho que em 1986. Ah sim, não posso esquecer-me de destacar a presença dos caras no Rock In Rio deste ano junto com o Júpiter Maçã.

A voz de Catatau também é cheia de referências, passando pela estridência de um Tom Zé e pela fanhosidade de quem ouviu Fagner nos idos Orós. A respeito de Tom Zé, ele já confessou publicamente ao fechar um show do mesmo, no Domínio Público, que ele só teve a certeza de cantar após ouvi-lo. Mais cearense impossível, afinal a sua “fanhosidade” é única, inclusive no uso de termos bem locais: caboré, Zé doidim, cabeção... Certa vez eu lhe perguntei como ele lidava com o sotaque do Ceará no Sudeste. Ele nem piscou dizendo que até dava relevância. Só depois entendi o sentido estético-existencial de tal afirmação, afinal, poderia soar como provincianismo, como na época me pareceu. Que nada! Fale outras coisas do cara, menos isso. Acredito que Catatau segue, sem se preocupar, a observação de Gilberto Freyre ao dizer que nenhum brasileiro é, ao mesmo tempo, mais apegado à sua terra, mais brasileiro e mais cosmopolita do que o cearense.

Coincidência ou não, pouco antes do eterno fechamento destas linhas, encontrei o Catatau antes de um show de um projeto instrumental ironicamente intitulado “Fernando Catatau e o instrumental”, no SESC Pompéia, em Sampa, no início de junho. Falei rapidamente com ele. Foi uma supresa mútua. Afinal não nos víamos desde 2006, acho, em um show no Dragão do Mar. O cara continua com aquela humildade franciscana. Falei deste texto e tal, ele se mostrou interessado, mas me disse que não tinha registro nenhum de seus shows, nos anos 90, no Cidadão. Que pena! Mas o show foi muito massa! O cara entrou calado, falou pouco como sempre, mandou um caminhão de riffs, de fraseados e de solos - ora violentos, ora delicados - super inspirados, que deixou a plateia chapada - incluindo músicos como o Dado (Religião Urbana) Villa-Lobos. Ali estava a essência do Catatau, desconstruindo todas estas referências às quais me referi, com o acompanhamento de Kassin (Baixo), da lenda viva Lincoln Olivetti (Teclados), Samuca (bateria), e Clayton Martins (bongô e guitarra sintetizada).

Voltando ao nosso drama-enredo, infelizmente não venho acompanhando em detalhes a cena musical de Fortaleza co-pós-Instigados como deveria. Na verdade, as várias bandas e projetos que vêm surgindo, ressurgindo e findando-se (Quarto das Cinzas, Karine Alexandrino, Jonnata Doll, Plastique Noir, Mirella Hipster etc.) com certeza não são herdeiras dos Instigados. A Banda nunca esteve nem aí para puxar algum movimento ou manifesto. A única dica que as bandas de Fortaleza parecem seguir do Cidadão Instigado é esta: experimente e procure o teu som! Nesta busca, talvez, o não-encontro seja o melhor lugar para se estar.


ibanda Gangue da Cidade