o aprendiz de bruxo

nuno gonçalves

para todos os aprendizes de bruxo

seguindo uma centopéia bailarina e um fotógrafo em busca de um nascedouro perdido
pressinto o hálito nostálgico de uma partitura não codificada
enquanto uma barata se esforça por mover o grão que modificará o mundo
e um velho hippie segue cantando os sonhos antigos nas calçadas do centro histórico
dessa monstruosa cidade
onde um dia se encontraram os cavalos do sul e do norte
onde um dia passeou o aprendiz de bruxo
                          com suas mandrágoras e seus caleidoscópios
onde sentaram falaram e comeram os homens e as mulheres e as crianças de Chiapas
entre cervejas e tequilas e esperanças vãs e gastas
sigo espremendo os olhos vazios deste zócalo imenso onde a bandeira tremula
como as mãos da puta que à noite rondará esses mesmos hemisférios
em busca de um pouco de grana
em busca da rigidez de uma pica
em busca de um tanto de droga
ao meu lado um jovem de óculos me grita
sou negro sou livre sou lindo
e as pessoas passam como zumbis em direção à boca do metrô
onde repousaram seus silêncios e suas inércias
como se a revolução nunca tivesse ocorrido
como se não houvesse nenhuma promessa do outro lado do muro
como se os ventos do mar não tivessem forças para mover o barco
a tarde se despede como uma mosca enterrada num circo
enquanto baila a centopéia no picadeiro
e segue o fotógrafo a sua busca ousada
escrevo uma espiral nos seios de minha amada
como uma tentativa de se aproximar dos bicos
como uma ameaça de se entregar aos riscos
como uma imensa baleia atravessando os oceanos em busca de sua cria
no céu se abre uma fenda por onde escapam os gritos dos mártires
suas lágrimas de pulque caem em minha língua como bálsamo
e seu efeito gravita em meu corpo como as gotas lisérgicas do ácido
a poesia nos chega como uma ressaca sagrada